Gorduras trans: onde, como, quando?!

Nosso especialista tira as dúvidas, esclarece os riscos e explica ao que ficar atento nos rótulos.

Aquelas e aqueles com dez anos de idade ou menos talvez não entendam o que vou dizer, porém nós, com mais… experiência, com certeza notamos alguma diferença entre o nosso biscoito recheado (ou bolacha recheada – não vamos entrar no mérito dessa questão, afinal incitar uma guerra civil não é nossa intenção) favorito, e que comíamos até o início do século XXI, em relação às bolachas (ou biscoitos) recheadas que comemos hoje.

Certamente, parte dessa impressão é apenas a nostalgia falando, a visão de uma comida de infância tratada pelo filtro das boas memórias. Mas a outra parte pode ser uma percepção sensorial completamente objetiva e completamente baseada em razões reais. O motivo disso é um só e um grande motivo: as gorduras trans (e o fato delas serem, hoje, as gorduras menos recomendadas para o consumo humano).

O QUE É GORDURA TRANS?

Mas o que essas gorduras trans têm a ver com meus biscoitos ou minhas bolachas? Por que elas são as menos recomendadas para consumo? De onde vêm? O que são? Vou morrer?!

Calma, vamos por partes. Conhecimento é como um bom vinho: devemos apreciar cada gota dele; e se consumirmos grandes quantidades rápido demais podemos acabar de cara no chão e com uma baita dor de cabeça depois.

Primeiramente, sim, você e eu e todos os seres vivos vamos morrer. Mas provavelmente não tão rápido assim.

Quanto a ‘o que são as gorduras trans’, elas são gorduras insaturadas cujas moléculas contêm uma estrutura espacial levemente diferente das estruturas de gorduras insaturadas mais comuns na natureza. Isso não quer dizer, no entanto, que as gorduras trans não existem na natureza. As gorduras trans existem, sim, na natureza; mas em quantidades muito pequenas. São formadas em processos naturais que ocorrem no sistema digestório de ruminantes, como as vacas. Assim, podemos encontrar baixos níveis gorduras trans naturais (menos de 4% em média) na carne, no leite e seus derivados. Contudo, as fontes mais relevantes de gorduras trans na nossa dieta são artificiais. São gorduras vegetais modificadas pelo homem para uso em alimentos.

PRA QUE CRIAMOS GORDURAS TRANS?

Por que, então, a humanidade resolveu produzir as gorduras trans? Pra que nos colocar em risco assim? Acontece que, no século XX, não queríamos produzir gorduras trans de fato. Queríamos, apenas, criar gorduras com características específicas para uso em alimentos a partir de óleos vegetais. As gorduras trans e seus efeitos foram conseqüências não previstas dessas gorduras modificadas.

Para entender o porquê disso, precisamos entender como funcionam as gorduras. As gorduras são como tomadas em que podemos conectar três aparelhos eletrônicos ao mesmo tempo, algo assim: |_|_|. Na nossa metáfora, a tomada tripla é uma molécula de glicerol (formando a ‘base da tomada’: __); e os aparelhos ligados são o que chamamos de ácidos graxos (os ‘aparelhos ligados na tomada’: | | | ). Dependendo do tipo de ácido graxo ligado, a gordura final vai ter características de textura e derretimento diferentes (se isso lembra o que dissemos no passado sobre o cacau, não é mera coincidência). Quanto mais insaturados forem os ácidos graxos ligados, mais líquida e mole será a gordura final; quanto mais saturados os ácidos graxos, mais dura será a gordura (de fato, uma gordura 100% saturada é tão deliciosa quanto parafina de velas. Suponho que ninguém aqui coma velas, caso contrário, queiram perdoar-me).

Os ácidos graxos são feitos de carbonos (C) ligados entre si e ligados com hidrogênio (H) também. Calma! Não vamos entrar em nada de Química pesada. Não vai doer, prometo. Os ácidos graxos saturados apresentam uma cadeia simples de carbonos, ligados apenas uma vez entre si (algo assim: C-C-C) e contêm o máximo de hidrogênio possível na molécula. Já os ácidos graxos insaturados têm uma ou mais ligações duplas entre dois carbonos (algo assim: C-C=C) e contêm menos hidrogênios na molécula. Pronto. Era apenas isso (não disse que não iria doer?).

Como você deve estar se perguntando, deixemos tudo claro de cara: falaremos em gorduras saturadas quando nos referirmos a gorduras com maior proporção de ácidos graxos saturados e, previsivelmente, falaremos em gorduras insaturadas quando nos referirmos às gorduras com mais ácidos graxos insaturados. Agora podemos continuar em paz.

REVOLUÇÃO GORDUROSA

No século XX, descobrimos que era possível quebrar as ligações duplas de ácidos graxos insaturados e adicionar hidrogênio à molécula, tornando o ácido graxo mais saturado. Assim, era possível transformar gordura insaturada em gordura mais saturada; era possível transformar óleos líquidos em gorduras mais sólidas. Esse é o processo que chamamos de hidrogenação de gorduras.

Assim, para substituir as gorduras saturadas animais, que eram vistas como prejudiciais à saúde e que são mais caras que os óleos vegetais (leia-se: gorduras insaturadas vegetais), a indústria de alimentos do século XX começou a hidrogenar os óleos vegetais para transformá-los em gorduras tão saturadas quanto o necessário para o alimento. Uma gordura vegetal para margarina é diferente daquela para panificação ou daquela para rechear um biscoito ou fazer um sorvete. Assim, diferentes tipos de gorduras vegetais hidrogenadas foram sendo criados pela indústria.

Como a hidrogenação é muito cara e uma gordura totalmente hidrogenada seria inútil (seria quase uma parafina), a indústria percebeu que poderia hidrogenar a gordura vegetal até certo ponto, conseguindo a textura perfeita para uso, sem criar algo caro demais (por limitar a aplicação da hidrogenação). Era o produto perfeito! Assim nasceu a gordura vegetal parcialmente hidrogenada.

GORDURAS COLATERAIS

Mas, como nada é o que parece, assim nasceu, também, o problema das gorduras trans: quando se faz uma hidrogenação parcial de gorduras, alguns ácidos graxos não são hidrogenados, não são saturados no processo. Eles continuam insaturados. O problema é que a alta energia e as condições da hidrogenação fazem com que muitos dos ácidos graxos insaturados não-trans sejam transformados em ácidos graxos insaturados trans (sua estrutura espacial é distorcida pelo processo). E, portanto, são produzidas gorduras trans pela hidrogenação parcial.

No final do século XX, no entanto, a situação ficou um pouco mais ‘engordurada’, por assim dizer. Estudos e órgãos científicos mostraram fortes evidências de efeitos prejudiciais das gorduras trans no nosso corpo. Com isso, no início do século XXI, tornou-se reconhecido que as gorduras trans não são totalmente seguras para o consumo humano. Atualmente, reconhecemos que as gorduras trans são responsáveis pelo aumento dos níveis de LDL no sangue (‘mau colesterol’); diminuição do HDL no sangue (‘bom colesterol’); e estão fortemente ligadas a aumento no risco de doenças cardíacas, derrames e diabetes tipo 2. Um pouco além do que se desejava ao fazer biscoitos recheados (e muito menos delicioso, com certeza).

NÃO, NÃO, GORDURÃO

Com as descobertas nem um pouco saborosas do início deste século, vários países e o Brasil endureceram as leis relativas às gorduras trans. Hoje, é obrigatório rotular a quantidade de gorduras trans nos produtos e é uma diretiva nacional e internacional reconhecer que não há benefícios na ingestão de gorduras trans e informar que o consumo delas devem ser o menor possível, não devendo ultrapassar a marca de 2g/dia (ver o link da página da ANVISA sobre gordura trans abaixo).

Por causa dessas revelações e desses requerimentos legais, as indústrias de alimentos de hoje buscam minimizar ou eliminar as gorduras trans nos seus produtos (por necessidade, claro). Sendo a necessidade uma poderosa força motriz, as indústrias vêm empregando alternativas como o uso de novas técnicas para a produção de gorduras vegetais livres de ácidos graxos trans ou mesmo o uso de gorduras não modificadas o máximo possível (por mais difícil ou caro que seja isso).

É por causa dessas mudanças na produção que as gorduras usadas pela indústria de hoje são bastante diferentes daquelas usadas há 15 anos ou mais. E é por isso que, de fato, podem existir diferenças perceptíveis nos produtos que consumíamos antes em relação às suas versões de hoje (viu? Não era só a nostalgia falando. Você tinha razão o tempo todo. Pode comer um biscoito pelo sucesso! Ou talvez não…).

BRECHAS LEGAIS

Apesar do endurecimento das leis, das novas alternativas de produção e do reconhecimento mundial de que óleos parcialmente hidrogenados não são mais vistos como seguros para o consumo, ainda há brechas na lei brasileira, pois não há ainda proibição do uso de gorduras parcialmente hidrogenadas (a maior fonte de gorduras trans) como houve em outros países. Assim, alguns produtos podem conter gorduras trans pelo custo baixo de gorduras parcialmente hidrogenadas e/ou pela textura e sabor que essas gorduras conseguem gerar.

Mas… se o rótulo diz ZERO trans, posso confiar, certo? Infelizmente, minha cara, meu caro, não. Acontece que a legislação brasileira permite que quantidades ‘abaixo de 0,2g por porção1 sejam rotuladas como ‘zero’, por serem muito pequenas ou até não detectáveis (uma prática não restrita ao nosso país, vale lembrar). De fato, menos de 0,2g não é um problema. O problema é o tamanho da porção. Se comêssemos apenas uma porção, estaríamos bem. Mas ninguém garante que comeremos apenas uma porção daquele produto.

Assim, se consumirmos 10 porções em um dia desse produto, estaremos perigosamente perto dos limites recomendados de segurança para gorduras trans (0,2g x 10 = 2g), mesmo que o rótulo diga que é zero trans.

ABRINDO OS OLHOS ANTES DA BOCA

A dica é ler os ingredientes nos rótulos. Procure por ‘gordura vegetal parcialmente hidrogenada’ ou ‘óleo vegetal parcialmente hidrogenado’ ou algo assim. Os produtos que contêm esse tipo de ingrediente contêm gordura trans e são a evitar. Normalmente, estão presentes em margarinas, biscoitos ou bolachas, bolos, salgadinhos, sorvetes e até chocolates (infelizmente).

Atenção! Ao encontrar nos ingredientes gordura ou óleo vegetal modificada/o, não se assuste, isso não significa necessariamente que haja gordura trans no alimento. Atualmente, existem alternativas para a produção de gorduras vegetais modificadas sem conter gorduras trans. A simples menção dessas gorduras não é evidência definitiva. Ou seja, tente ler com atenção os rótulos e as informações nutricionais.

GORDURA EM EXTINÇÃO

Seja como for, não há motivo para pânico. A indústria e a legislação estão mudando. Em breve, a gordura trans artificial será praticamente extinta. E se mesmo assim você não se sente segura ou seguro, minha cara leitora, meu caro leitor, veja as coisas por outro ângulo. Gorduras trans existem na natureza desde que existem animais nos pastos. Nós nos alimentamos de produtos desses animais há séculos. Se nossos bisavós e tataravós sobreviveram felizes o quanto sobreviveram, comendo produtos com gorduras trans naturais; acredito que, mesmo consumindo pequenas quantidades de gorduras trans aqui e ali, não estamos caminhando a passos tão largos assim para nossas covas. Minimize, sim, sua ingestão de gorduras trans e fique atento. Mas não há necessidade para pânico.

Ou seja: coma com atenção, mas coma feliz e em paz.

PARA SABER MAIS

Aqui vão alguns links 100% trans, mas que vocês podem consumir à vontade.

Página da ANVISA sobre Gorduras Trans

Resolução da ANVISA de 2003 sobre rotulagem; gorduras trans no item 3.4.3.2

Página da US FDA sobre gorduras trans (inglês)

Resolução da US FDA banindo os óleos vegetais parcialmente hidrogenados (inglês)

Página da Universidade de Harvard sobre gorduras trans (inglês) 

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