Chocolate esbranquiçado: estragou?

Com a Páscoa chegando, nosso colunista explica se dá para comer ou não aquela barra que ficou opaca, dura e cheia de furinhos.

Ah, a Páscoa! Não há época no ano mais doce do que essa para os chocólatras de plantão (como este que vos fala) e para aqueles que fornecem essas delícias de cacau para tais amantes do chocolate também, claro. Com o topo dos deliciosos ovos achocolatados surgindo no horizonte, sabemos que a Páscoa está chegando. Mas, além das lembranças das delícias do cacau açucarado, também começam a surgir as perguntas sobre chocolate que são quase tão tradicionais nesta época quanto os próprios ovos de Páscoa.

Dentre elas, uma das que mais vejo e mais gosto de responder é a do clássico e atemporal dilema do chocolate esbranquiçado: por que meu chocolate está com manchas brancas? Por que ele está opaco, duro e cheio de furinhos? Ele estragou? Posso comê-lo? Vamos com calma.

Tudo se explicará, minha cara apreciadora e meu caro apreciador de chocolates. Mas, para tranqüilizá-los desde já: seu chocolate, muito provavelmente, está seguro para consumo. E tudo o quê aconteceu foi, muito provavelmente, apenas uma mudança na estrutura física da gordura do cacau devido a um aumento de temperatura (algo que chamamos de ‘fat bloom’). Só isso. Ufa!

Agora que estamos mais calmos, hora de abrir o pacote e entrarmos de cabeça no chocolate (metaforicamente, no caso).

A DANADA DA GORDURA

Na maioria esmagadora dos casos em que o chocolate (previamente marrom, brilhante, homogêneo e que derretia na boca) se apresenta com manchas esbranquiçadas, com buraquinhos no interior, sem brilho e com uma textura mais dura e menos agradável na boca, não houve alterações biológicas nem na composição química. Assim, nessa maioria esmagadora de casos, o chocolate é perfeitamente seguro para consumo. Então, o que aconteceu? De quem é a culpa por esse ‘fat bloom’?

Ironicamente, a culpa disso tudo é da gordura do chocolate, da gordura (ou manteiga) do cacau. Uma leitora ou leitor amante de chocolate vai dizer: mas não é ela que confere justamente o brilho e a textura deliciosa do chocolate? Ela não pode ser a vilã! Pois bem, neste caso, a gordura do cacau é tanto a mocinha quanto a vilã de nossa deliciosa história.

A gordura do cacau, quando sólida, se apresenta organizada em minúsculos aglomerados sólidos que chamamos de cristais (a MC Box abaixo vai dar mais detalhes sobre eles). Acontece que esses cristais, como peças de Lego, podem ser desmontados e remontados de várias formas. E, curiosamente, uma dessas formas cristalinas (chamada de forma V – cinco) dá à gordura do cacau a propriedade de ser sólida à temperatura ambiente e derreter-se deliciosamente quando exposta à temperatura das nossas ávidas bocas. Essa forma cristalina ainda dá o brilho e a textura dos pedaços sólidos de chocolate que tanto amamos. Essa é a nossa “mocinha”.

O CALOR MUDA TUDO

No entanto, existe outra forma (entre as várias que existem: se você não leu a MC Box, dê uma olhadinha, vai ajudar) de cristal de gordura de cacau que só vai derreter a temperaturas mais altas que aquela de nossas bocas e que também não dá muito brilho à massa do chocolate. Essa (forma IV – seis) é a nossa vilã.

Agora que sabemos quem é quem, resta saber como a nossa mocinha acaba corrompida e transformada em uma das maiores vilãs que os chocolates já viram. Calor. Isso mesmo, calor. Assim como o gelo se derrete e vira água quando quente, o mesmo ocorre com a gordura do cacau: quando a temperatura sobe muito, o chocolate (e sua gordura) derrete. Quando a temperatura baixa novamente, tanto a água quanto o chocolate se solidificam de novo. Mas, ao contrário da água, a gordura do chocolate pode se solidificar de várias formas diferentes e só uma delas é aquela que queremos.

Como a natureza gosta de pregar peças em nós humanos, a forma cristalina que desejamos (a forma ‘mocinha’) não é a forma mais estável, a mais ‘natural’ da gordura do cacau. Então, quando o chocolate se derrete e depois se solidifica novamente sem controle humano, ele vai se solidificar, em parte, na sua forma mais estável (como qualquer coisa na natureza) e em parte em outras formas ainda menos estáveis que a forma V (forma IV – quatro, normalmente), as quais se converterão à forma VI. Infelizmente, tal forma VI é aquela forma ‘vilã’, a forma que não derrete nas nossas bocas, que não tem brilho.

COMO AS MANCHAS APARECEM

Ok. Explicamos o porquê das alterações na textura e no brilho. Mas e as tais manchas??? Calma, calma, amante do chocolate. Agora é a hora. Acontece que, com a recristalização da gordura sob essas novas formas, ocorre a separação de parte dela da massa do chocolate. A gordura do cacau recristalizada, então, migra para a superfície, criando as manchas claras que vemos. Outro efeito da migração/separação da gordura do cacau no chocolate é o surgimento de ‘falhas’ na massa do chocolate, os furinhos que vemos no interior e até na superfície. Simples assim.

Então, depois dessa deliciosa aventura achocolatada, é hora de embrulharmos tudo em uma linda embalagem para finalizarmos. O chocolate se torna esbranquiçado, sem brilho, com furinhos e com textura alterada quando sofre um aumento de temperatura seguido de redução da temperatura. Nesse caso, o chocolate se derrete e se solidifica novamente sem controle: a gordura do cacau sai de sua forma desejável ao derreter e se recristaliza (solidifica) sob formas indesejáveis e que causam os problemas mencionados algumas linhas acima neste parágrafo.

Ou seja, se o seu chocolate estava selado e/ou não foi exposto a contaminação alguma e (infelizmente) apareceu esbranquiçado e alterado, ele ainda é perfeitamente seguro para comer; mesmo que sendo muito menos gostoso. Pelo menos, espero que, agora, o consolo de saber o porquê dessas alterações ajude você a superar o amargo trauma de ver o nosso amado chocolate em tal situação. Meus pêsames.

PS: como sempre, aqui vão alguns bombons para vocês se deliciarem um pouco mais:

Um artigo em português sobre uma forma de reduzir o ‘fat bloom’.

Introdução de artigo em inglês sobre o ‘fat bloom’ em geral.

Um pedaço de artigo em inglês sobre os cristais da gordura de cacau e a têmpera.

Página, em inglês, do MIT discutindo a têmpera do chocolate.

Artigo da Imperial College of London sobre o polimorfismo da gordura de cacau.